terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Mesa Solidaria I



Sara Dias Oliveira (texto in Público de 24 Janeiro 2009)

A solidariedade também se prova à mesa
dos restaurantes S. Maria da Feira

Todos os dias, 14 restaurantes de Santa Maria da Feira oferecem 47 refeições a famílias carenciadas. A ideia partiu de um empresário e a câmara agarrou-a para chegar à pobreza envergonhada, à classe média que de repente perdeu quase tudo, matando a fome a quem nunca pensou pedir ajuda.


Como se vê pelas notícias destes dias, o mundo pode sempre desabar, até para quem pensa não ter nada para vir abaixo. O mundo de Susana Mesquita, de 34 anos e com dois filhos, de 16 e quatro, desabou pela primeira vez em Fevereiro do ano passado, quando o dinheiro deixou de entrar em casa. O marido fora detido por conduzir sem carta. Sem emprego, bateu à porta do Rosto Solidário, do seminário dos passionistas de Santa Maria da Feira, para ter comida e pagar água e luz. "O meu marido era o único ganha-pão e tive de pedir ajuda", diz. Regressa hoje a esses dias já de cara levantada, muito graças a um empresário com quem a sua vida se cruzou: primeiro para lhe dar, literalmente, de comer; depois, para lhe arranjar trabalho.

Susana não contava com tanto. Num desses primeiros dias difíceis, recebeu um telefonema da Câmara da Feira a informá-la de que havia um restaurante local que lhe oferecia duas refeições e meia por dia. Estranhou a oferta, mais ainda quando, dias depois, o dono do espaço de restauração lhe ligou para explicar a oferta. Tinha direito às refeições, pão incluído, e podia comer no restaurante e ser servida como qualquer cliente. Aceitou, mas nunca se sentou à mesa. "Não quis. Se calhar não me sentiria à-vontade. Mas fui sempre bem atendida e servida".

Passar ali diariamente fê-la saber que o restaurante precisava de uma empregada de limpeza. Era o emprego que não tinha, mas nem durou muito, porque, pouco depois, passou a ajudar na cozinha. E decidiu abdicar do apoio. Como se fosse necessário, atira uma justificação: "Tinha um trabalho e estava a tirar lugar a outras famílias que podiam usufruir das refeições". Começava produzir efeitos o altruísmo do patrão, também ele um "rosto solidário" como aquele a que Susana fora pedir inicialmente ajuda, mas sem rosto público. E que pedia apenas que o seu exemplo fosse, como foi, seguido por outros.

É a multiplicação do gesto que importa, e não o rosto ou o nome de quem o começou, assume este empresário que, no início de 2009, enviou uma carta à autarquia manifestando a disponibilidade para oferecer refeições e pedindo que lhe indicassem famílias que realmente precisassem de ajuda. Entretanto, deu trabalho a duas mulheres que usufruíam da alimentação gratuita: a Susana e a uma jovem que acaba de ser mãe pela segunda vez. Continua a dar alimentação a famílias carenciadas, agora integrado no programa Restaurantes Solidários, que arrancou na Feira em Outubro. Hoje, 14 espaços de restauração oferecem diariamente 47 refeições: 19 almoços; e 28 jantares.

O mote, óbvio, foi a crise. "Vi uma reportagem sobre um restaurante que estava a racionar as doses para não haver sobras, o que não fazia sentido. E vi o presidente da Câmara da Feira, num programa de televisão, a falar sobre o desemprego na região e percebi que a coisa estava mesmo feia". Não perdeu tempo. E a autarquia, sentindo que havia nessa disponibilidade do empresário uma oportunidade, aproveitou-a. "Foi excelente, porque tínhamos várias situações que se encaixavam nesse apoio", assinala Manuela Coelho, da Acção Social do município.

As famílias são indicadas e acompanhadas pela câmara, os espaços assumem todas as despesas das refeições e recebem o selo de restaurante solidário. "Queremos alargar esta intervenção ao concelho para chegar à pobreza mais envergonhada. É um programa que está a correr muito bem, que teve uma grande adesão", adianta Manuela Coelho, que não sabe quando terminará o programa. "À partida, manter-se-á enquanto a necessidade durar".

A prudência compreende-se. Veja-se o caso de Susana, cujo mundo, reerguido, viria a desabar pela segunda vez, no final do ano passado. No regresso do funeral da avó, os seus pais tiveram um acidente de viação. Neste momento, passa os dias numa unidade hospitalar em Coimbra, à espera que a mãe estabilize e que o pai recupere a consciência. E teve de desistir do curso de cozinha e pastelaria que tinha iniciado em Outubro e que lhe daria equivalência ao 12.º ano.

Neste momento, o orçamento familiar é gerido com os 416 euros do Rendimento Social de Inserção (RSI), os 85 do abono e mais algum dinheiro que, de vez em quando, se arranja com os trabalhos pontuais do marido. Só para a renda vão 350 euros por mês. Quando a vida retomar o seu rumo, Susana, que ainda assim continua a sorrir muito, quer regressar ao mercado de trabalho.

O mesmo objectivo é perseguido por Ana, nome fictício, 37 anos. Está divorciada há oito anos e tem um filho de doze. Não esconde o constrangimento de ter de pedir ajuda para comer, mas há algo que se lhe impõe à vergonha: "É uma maneira de dar uma refeição digna ao meu filho".

Normalmente, o jantar "estica" até ao almoço do dia seguinte em casa de Ana, que nunca teve uma vida fácil. Aos 13 anos, foi obrigada a sair da escola para trabalhar, depois de o pai ter tido um acidente grave que o incapacitou para o resto da vida. "Sempre lutei para ter as minhas coisas. Não faltava nada, tinha as contas em dia e a situação alterou-se drasticamente", revela com uma voz serena entrecortada por um sorriso triste. Há quatro anos perdeu o emprego de assistente administrativa do serviço de saúde de uma fábrica de calçado. Pouco depois, foi-lhe diagnosticada uma doença degenerativa que lhe afecta as articulações e a obriga a consultas e tratamentos constantes. "Havia dias em que era o meu filho que me vestia antes de ir para a escola", desabafa.

Com 180 euros do RSI e 50 de abono, Ana teve de pedir ajuda e hoje recorre aos programa de refeições. Como Susana, e outros, nunca se sentou à mesa do restaurante. "Não é uma situação normal e é uma questão de princípio... e depois haveria outros gastos além da refeição".
Os cêntimos são contados e recontados. As deslocações são feitas de autocarro, não há orçamento para alimentar um carro. "Depois do divórcio, fiquei com a casa, mas é uma pessoa amiga que me empresta dinheiro para pagar a mensalidade, para não ir para a rua". O pouco que lhe sobra ao fim do mês dá para comprar "fruta e iogurtes" para o filho.


A voz altera-se ligeiramente e os olhos embaciam-se ao longo da conversa. "Sempre achei que poderia ter uma vida completamente diferente da dos meus pais, lutei para ter as minhas coisas e, hoje, olho para trás e a minha vida não melhorou nada". Ainda não foi ao fundo. Espera tirar um curso de Educação e Formação de Adultos que lhe dê equivalência ao 12.º ano. Quer aprender espanhol e, quem sabe, um dia emigrar.


"Infelizmente, as pessoas com dificuldades são discriminadas: têm de andar rotas e não podem ter uma vida normal".

Custa pedir para comer

Maria, nome fictício,tinha essa vida normal. Até Setembro de 2008. Perdeu o emprego de escriturária. Passado um ano, o marido ficou sem o trabalho de desenhador da construção civil. Nas mãos, o empréstimo da casa e do carro, as despesas da universidade do filho de 18 anos e a sogra doente, debaixo do mesmo tecto. "Nunca me imaginei numa situação destas. Sempre vivemos desafogadamente, íamos de férias, pertencíamos à classe média, mas caímos no fundo. De repente, não tínhamos dinheiro".

Maria, 54 anos, vai ao restaurante buscar três refeições. "Somos quatro, mas divido a minha refeição com a minha sogra e assim dá mais uma para outra família que precise". Maria aproveita o que lhe aparece pela frente. Já fez camas em hotéis, já ajudou em festas de crianças, está sempre disponível para arregaçar as mangas. O marido está a tentar criar o próprio negócio, o que os leva a acreditar que melhores dias virão. Mas custa pedir para comer. "Sinto-me muito constrangida", admite Maria.

Teresa Silva sabe várias histórias como esta. Tem um restaurante que cede cinco refeições diárias a um casal com três filhos menores. "Também passei por um mau bocado e percebo essas situações. Há dias em que sobra muita comida. Porque não dar?". Fá-lo com vontade e sobretudo pelas crianças. Todas as noites, enche os recipientes da família com o que estiver a sair da brasa, no seu restaurante especializado em grelhados. Noutro estabelecimento, Anabela Madureira, faz uma pausa no serviço para explicar por que dá refeições a quem precisa. "A gente vê as dificuldades que as pessoas atravessam, os problemas para pagar todas as despesas, não há dinheiro para tudo e cortam na alimentação". Levam o prato do dia, raramente se sentam para comer a refeição. "São envergonhados, mas dizem sempre obrigado". Maria, 54 anos

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