À PROCURA DA PALAVRA
P. Vitor Gonçalves
DOMINGO XXVII COMUM Ano B
"Foi por causa da dureza do
vosso coração
que ele vos deixou essa lei."
Mc 10, 5
Dureza de coração?
Hoje é um dos dias em que apetecia pegar só no final
do evangelho: Jesus, rodeado das crianças que chamou para junto de si e a dizer
que só pode entrar no céu quem acolher o Reino como uma criança. Com o encanto
e o coração de uma criança! Aparentemente mais fácil do que a primeira parte do
evangelho, que evoca as situações dolorosas das uniões e desuniões entre o
homem e a mulher, os matrimónios e as separações. E sentindo-me muitas vezes
pequeno diante de tantos testemunhos felizes e dolorosos, não posso deixar de
partilhar algumas palavras sobre este tema delicado em que o ideal e o real tantas
vezes se opõem.
Diante da cilada que lhe armam, Jesus lembra as
palavras da criação e destrói a base do patriarcado na relação do casal. Ele
exclui qualquer espécie de domínio do homem sobre a mulher. Entre o homem e a
mulher não pode haver opressão ou subjugação de ninguém, porque Deus criou-nos
homem e mulher. Ambos com a mesma dignidade, responsáveis pelo seu destino,
chamados à felicidade. Nenhuma felicidade se faz subjugando alguém. O projecto
matrimonial só pode ser a suprema expressão do amor humano, se nenhum fôr dono
ou exercer domínio sobre o outro. As inúmeras situações de “violência
doméstica”, da morte de mulheres às mãos dos maridos, e até de maus tratos
entre namorados são gritos de alerta. Quanto de cultural, de tradições desumanas, e
até de práticas religiosas contrárias às palavras de Jesus, é preciso ainda
evangelizar? O que existe ainda de controle, submissão e imposição do homem
sobre a mulher no dia a dia, em instituições civis e religiosas? Que “nova
evangelização” para a igual dignidade do homem e da mulher é pedida a nós,
cristãos?
O horizonte de verdade e de compromisso em que Jesus
coloca o amor de um casal é uma interpelação constante à nossa vida. Creio que
já ninguém acredita no casamento como um “seguro-contra-todos-os-riscos”, e
ainda bem, porque nunca o foi! Se é verdade que as relações são mais frágeis,
também se ganhou em autenticidade, em coragem de dar nome ao que se pensa e se
sente. Não percebemos melhor que o amor é um projecto, que tem crises e altos e
baixos, e que vale a pena reacender o fogo que se apagou quando as rotinas
gelam a relação? Alguém viu o filme “Terapia
a Dois”, ainda nos cinemas? Sim, pouco ou nada fala de Deus, mas fala tanto
de reconstruir o amor que imagino Jesus a sorrir com as nossas trapalhadas
afectivas!
Mas o mais difícil é outra coisa. Os casamentos que
acabaram (alguns nunca tinham começado!), as separações dolorosas, as culpas
que se eternizam, a dor de sentir que Deus parece olhar de lado para quem
“falhou” no casamento, a dificuldade de a Igreja acolher tantos que sofrem e
reconhecer algo que verdadeiramente acabou, isso é que é difícil. Ah Jesus!,
que ajuda nos pedes e nos dás para sermos verdadeiramente intérpretes da tua
vontade em libertar e salvar o que estava perdido? Como podemos acolher o Reino
como uma criança?
Voz
da Verdade 07.10.2012
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