quarta-feira, 3 de março de 2010

Notas soltas

«Dear All,

Abro, sempre trémulo a uma leitura divinatória, o Evangelho de S. João.
Os olhos espraiam-se por esse episódio nunca acabado de interpretações, que é o diálogo de Jesus com Nicodemos.
Imaginamos Jesus convidado para jantar na casa apalaçada de Nicodemos, um fariseu abastado, homem culto, inteligente, sensível.
A conversa, regada com o melhor néctar dos deuses e as iguarias superlativas concedidas aos amigos e às personalidades de estilo, prolonga-se noite fora.
Jesus apreciava sobremaneira as coisas boas e raras da vida, a comida, o vinho, as mulheres, com aquele grau de autonomia e independência que lhe permitiu honrar a vida, não descendo da cruz. A noite quente estava estupenda de luz, ocasião que permite aquele tom sussurrado de confidências, devaneios, reflexões, a afectividade deslizando pela epiderme do corpo.
Nessas situações, o investimento é o outro, a atenção do outro, aquele que pode ser o meu revelador, o outro como espelho não esfarrapado da nossa alma.
Nicodemos quer agarrar o momento.
Sente que é ocasião única, o interlocutor faz-lhe ver o que está por detrás das suas seguranças limitadas, as costas que não vemos, pois habitamos um corpo que vive uma vida apenas entretido com o rosto dianteiro; metade da nossa vida passa-nos ao lado.
Como posso nascer, sendo velho?
Nicodemos habita na mais singela materialidade; acredita apenas nas mãos que fazem a guerra e a paz, a espaços e transitoriamente.
Vive no momento que passa, no fôlego curto de uma respiração medida por números.
Olha que há mais facetas nas coisas, do que coisas.
À despedida, num abraço comovido, mil novos sentidos tinham sido descobertos.
Há dias passei por Nicodemos, ainda a decifrar toda a plenitude de possibilidades abertas naquela noite»

Nuno Gonçalves

1 comentário:

Superiora disse...

Belos Interiores Nuno! ;-)